-
Quero falar consigo. -
Voltei-me instintivamente para a direita, só que não encontrei ninguém. O
cavalheiro que pretendia ter o prazer da minha companhia estava de pé
ligeiramente atrás de mim, como se estivesse a utilizar o meu ombro direito
como refúgio temporário.
-
Deixe-se estar sentado -
sussurrou a sua sombra, expirando ruidosamente.
-
Desculpem, meus caros senhores,
mas não estou habituado a que me digam o que devo fazer, sobretudo se não
procurei a vossa companhia -, respondi, despudoradamente.
-
Sr. Estulin, lamentamos invadir
o seu espaço mas gostaríamos muito de falar consigo - disse o primeiro
cavalheiro, estendendo-me uma mão flácida, na esperança de que me decidisse a
apertá-la. - Escusado será dizer que lhe pedimos a máxima discrição.
As suas piruetas linguísticas davam-me a
entender que aprendera inglês numa dessas instituições britânicas elegantes ou
com um professor particular, um desses falsos eruditos que não conseguia evitar
erros desajeitados de sintaxe.
-
Como sabe o meu nome? Não me
lembro de lho ter dito. - Sabemos bastantes coisas a seu respeito, Sr. Estulin.
Conseguia aperceber-me de que o misterioso cavalheiro estava a começar a
sentir-se mais distendido na minha companhia.
-
Sente-se, por favor - disse eu,
apercebendo-me intimamente que também eu começava a descontrair.
Baixou o olhar, tirando automaticamente a sua cigarreira do bolso
interior do seu casaco de bom corte e começando a examiná-la.
Continuei sentado no meu banco de bar à espera de que um deles
quebrasse o silêncio.
-
Por exemplo, sabemos que está
aqui para cobrir a conferência Bilderberg. Que há muitos anos que nos segue.
Que, de alguma forma, parece conhecer a localização exacta de cada reunião,
embora a maior parte dos participantes só saiba onde irão realizar-se uma
semana antes da conferência. Que, por mais que tenhamos tentado baralhar as
nossas pistas e tomar todas as precauções necessárias, o senhor parece ter
conhecimento do que discutimos e da maior parte dos nossos planos futuros. Até
mesmo a escolha de alguns dos participantes foi influenciada pela sua
interferência, Sr. Estulin. A dada altura, julgámos que o tínhamos descoberto.
Que um determinado membro não convidado para a conferência era o seu contacto
interno. E que se as suas previsões após a conferência se revelassem erradas, o
membro, que de nada suspeitava, teria sofrido graves consequências pessoais.
Felizmente para ele, o senhor acertou.
Sotaque de Kent, pensei. - Como é que sabe
tudo isto? - perguntou o não muito inteligente segundo violino.
-
É um segredo profissional - foi
a minha vez de responder laconicamente.
Olhei o homem de alto a baixo. O segundo
violino tinha ombros largos, cabelo louro, um bigode aparado, grandes
sobrancelhas em arco, uma boca diminuta que se dobrava num sorriso
geometricamente aceitável e um temperamento excitável. O seu bigode vulgar e o
nariz gordo contorciam-se, de tensão, sempre que era a minha vez de falar.
Atrás de nós, fazendo parte de um
incompreensível e quase inaudível grupo de turistas galeses, estava sentado um
homem corcunda e barbudo, que usava luvas de pele e um boné, conhecido por ser
um melómano (era isso o que a senhora gorda com um enorme sinal no queixo
estava a dizer a todos, num tom de segredo).
-
O senhor é um enigma. - O meu
misterioso interlocutor anónimo mudou a posição das suas pernas esguias, meteu
a mão direita no bolso das calças deixando que as abas do casaco, ao
abrirem-se, revelassem a corrente de relógio que lhe atravessava o colete e
disse, num tom casual: - Ora bem - e, olhando de soslaio para os dedos agitados
do seu companheiro, começou a falar num tom calmo, mas firme.
-
Porque é que nos segue? Não
trabalha para nenhum jornal célebre. Escreve artigos que causam desconforto aos
nossos membros. Vários congressistas americanos e deputados canadianos foram
obrigados a cancelar a sua presença na nossa reunião anual, quando o senhor os
referiu como convidados.
-
Não pode vencer - sussurrou o
segundo violino.
-
O Clube Bilderberg, Sr.
Estulin, é um fórum privado onde alguns membros influentes da comunidade empresarial
levam a cabo discussões amigáveis, longe do olhar dos meios de comunicação
social. São convidados políticos para partilharem as suas experiências pessoais
e profissionais com o grupo. Tudo isto é feito na esperança de que este tipo de
fóruns consiga transpor o fosso que separa as grandes apostas políticas das
mais importantes necessidades dos povos do mundo. Não tentamos, de forma
alguma, influenciar as políticas ou a tomada de decisões dos políticos.
-
Tretas!!! - retruquei. Sentia
os músculos do meu pescoço a inchar e os meus dedos esticados ficarem tensos. O
primeiro violino emitiu um leve grunhido. - Calculo que Kennedy tenha sido
assassinado por extraterrestres, que Nixon tenha sido expulso do cargo pela sua
avó e que a culpa da crise petrolífera de 1973 seja do Winnie-the-Pooh. Se não
tivéssemos agido, o Canadá faria, neste momento, parte dos Grandes Estados
Unidos. Porque é que vocês mataram Aldo Moro?
-
Sabe que não lhe podemos dizer
nada, Sr. Estulin. Não vim aqui para discutir consigo.
Numa mesa redonda junto à janela, estava
sentado um velho flácido, calvo e míope, com um fato cinzento demasiado grande
e uns enormes óculos de massa, cujo rosto rosado ostentava a sombra permanente
de um barba preta que fora deixada crescer durante muito tempo, e um bigode
grisalho, mal aparado. Pediu um rum, encheu o cachimbo e ficou a olhar,
absorto, para o jogo.
Às onze e quarenta e cinco em ponto,
esvaziou o cachimbo, meteu-o no bolso das calças, pagou o rum e saiu, em
silêncio.
-
Seria pedir demasiado que esta
conversa ficasse entre nós? - Não costumo falar confidencialmente, sobretudo
quando se trata de Bilderberg. - Dei comigo a divertir-me com a confrontação,
esperando obrigar o primeiro violino a perder a calma.
O primeiro violino continuou a palrar,
durante alguns minutos, sobre as virtudes das parcerias, da colaboração entre
as nações, das crianças que morriam de fome em África e outros problemas
bicudos.
Tentei concentrar-me no que dizia, mas em
breve dei comigo a observar o rosto do segundo violino que, ou sorria, ou
passava a língua pelo bigode.
Quando os sons do primeiro violino se
tornaram uma toada insistente, voltei à realidade.
- Podemos fazer com que as coisas sejam
compensadoras para si, Sr. Estulin. Quais as condições que pretende impor?
Por entre as árvores, via-se a lua cheia.
Os candeeiros cintilavam. À distância, ouviam-se os sons abafados dos
restaurantes apinhados e os latidos dos cães. Ficámos os três em silêncio
durante vários minutos.
Apercebia-me de que o segundo violino se sentia pouco à vontade por
permanecer em silêncio, sentado desconfortavelmente na beira de um banco de
bar. Sem dúvida que estava a tentar inventar uma pergunta inteligente ou uma
observação profunda.
O primeiro violino pegou num cigarro,
acariciando-o, mordendo o lábio inferior e pensando em alguma coisa. Os seus
olhos não estavam fixos no cigarro mas perdidos na distância.
-
Como condição para o meu
silêncio, desejaria que todas as futuras reuniões de Bilderberg fossem
anunciadas publicamente e que fosse garantido acesso livre e sem restrições a
todos os jornalistas que nelas desejassem participar. Todas as conferências
serão públicas e a lista dos participantes será comunicada antecipadamente.
Nada de CIA, armas, cães, segurança privada e, acima de tudo, NADA DE SECRETISMO!
-Sabe que não podemos fazer isso, Sr.
Estulin. Estão em jogo demasiadas coisas e o jogo já vai muito avançado.
-Nesse caso, meu caro senhor - respondi -,
vão ter de me aturar até o árbitro apitar o [mal do jogo. Do salão, veio uma
sucessão rápida de notas de piano, conversas em voz alta, risos e exclamações
de crianças. (j reflexo do primeiro violino no espelho do salão mostrou-me os
botões de veludo de um colete reflectido.
-
Boa noite, Sr. Estulin. - O
primeiro violino não perdeu, nem por um momento, a sua cortesia. Na verdade, a
sua delicadeza era notável.
Deve ter sido por isso que o enviaram, pensei. Talvez, em
circunstâncias diferentes, pudéssemos até ter ficado amigos.
O segundo violino, na atitude cómica habitual de relaxar, inspirou e
expirou rapidamente. Tirou o chapéu e, segurando-o com as duas mãos à frente do
corpo, foi-se embora acertando o passo com o chefe.
As outras pessoas que se encontravam no
átrio do hotel eram duas mulheres com rostos sonolentos e cansados e um
caixeiro-viajante com uma barba tingida que envergava um colete de veludo preto
sobre uma camisa branca, com monograma, já muito usada.
«Que estranho os joelhos dele estarem a
tremer», pensei. Com efeito, fora uma experiência perturbante. Só então é que
me apercebi de tudo o que estava em jogo. Que não se tratara de uma mera
conversa entre o emissário deles e eu. Os dois homens atravessaram a praça e
desapareceram na escuridão. Que sentimento terrível de ansiedade. Ficara tão
determinado e invulnerável como antes. E, apesar de tudo, sabia que, a partir
de então, a minha vida estaria permanentemente em perigo.
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