O Mistério da Iniquidade - Parte III


-             Quero falar consigo. - Voltei-me instintivamente para a direita, só que não encontrei ninguém. O cavalheiro que pretendia ter o prazer da minha companhia estava de pé ligeiramente atrás de mim, como se estivesse a utilizar o meu ombro direito como refúgio temporário.
-             Deixe-se estar sentado - sussurrou a sua sombra, expirando ruidosamente.
-             Desculpem, meus caros senhores, mas não estou habituado a que me digam o que devo fazer, sobretudo se não procurei a vossa companhia -, respondi, despudoradamente.
-             Sr. Estulin, lamentamos invadir o seu espaço mas gostaríamos muito de falar consigo - disse o primeiro cavalheiro, estendendo-me uma mão flácida, na esperança de que me decidisse a apertá-la. - Escusado será dizer que lhe pedimos a máxima discrição.
As suas piruetas linguísticas davam-me a entender que aprendera inglês numa dessas instituições britânicas elegantes ou com um professor particular, um desses falsos eruditos que não conseguia evitar erros desajeitados de sintaxe.
-             Como sabe o meu nome? Não me lembro de lho ter dito. - Sabemos bastantes coisas a seu respeito, Sr. Estulin. Conseguia aperceber-me de que o misterioso cavalheiro estava a começar a sentir-se mais distendido na minha companhia.
-             Sente-se, por favor - disse eu, apercebendo-me intimamente que também eu começava a descontrair.
Baixou o olhar, tirando automaticamente a sua cigarreira do bolso interior do seu casaco de bom corte e começando a examiná-la.
Continuei sentado no meu banco de bar à espera de que um deles quebrasse o silêncio.
-             Por exemplo, sabemos que está aqui para cobrir a conferência Bilderberg. Que há muitos anos que nos segue. Que, de alguma forma, parece conhecer a localização exacta de cada reunião, embora a maior parte dos participantes só saiba onde irão realizar-se uma semana antes da conferência. Que, por mais que tenhamos tentado baralhar as nossas pistas e tomar todas as precauções necessárias, o senhor parece ter conhecimento do que discutimos e da maior parte dos nossos planos futuros. Até mesmo a escolha de alguns dos participantes foi influenciada pela sua interferência, Sr. Estulin. A dada altura, julgámos que o tínhamos descoberto. Que um determinado membro não convidado para a conferência era o seu contacto interno. E que se as suas previsões após a conferência se revelassem erradas, o membro, que de nada suspeitava, teria sofrido graves consequências pessoais. Felizmente para ele, o senhor acertou.
Sotaque de Kent, pensei. - Como é que sabe tudo isto? - perguntou o não muito inteligente segundo violino.
-             É um segredo profissional - foi a minha vez de responder laconicamente.
Olhei o homem de alto a baixo. O segundo violino tinha ombros largos, cabelo louro, um bigode aparado, grandes sobrancelhas em arco, uma boca diminuta que se dobrava num sorriso geometricamente aceitável e um temperamento excitável. O seu bigode vulgar e o nariz gordo contorciam-se, de tensão, sempre que era a minha vez de falar.
Atrás de nós, fazendo parte de um incompreensível e quase inaudível grupo de turistas galeses, estava sentado um homem corcunda e barbudo, que usava luvas de pele e um boné, conhecido por ser um melómano (era isso o que a senhora gorda com um enorme sinal no queixo estava a dizer a todos, num tom de segredo).
-             O senhor é um enigma. - O meu misterioso interlocutor anónimo mudou a posição das suas pernas esguias, meteu a mão direita no bolso das calças deixando que as abas do casaco, ao abrirem-se, revelassem a corrente de relógio que lhe atravessava o colete e disse, num tom casual: - Ora bem - e, olhando de soslaio para os dedos agitados do seu companheiro, começou a falar num tom calmo, mas firme.
-             Porque é que nos segue? Não trabalha para nenhum jornal célebre. Escreve artigos que causam desconforto aos nossos membros. Vários congressistas americanos e deputados canadianos foram obrigados a cancelar a sua presença na nossa reunião anual, quando o senhor os referiu como convidados.
-             Não pode vencer - sussurrou o segundo violino.
-             O Clube Bilderberg, Sr. Estulin, é um fórum privado onde alguns membros influentes da comunidade empresarial levam a cabo discussões amigáveis, longe do olhar dos meios de comunicação social. São convidados políticos para partilharem as suas experiências pessoais e profissionais com o grupo. Tudo isto é feito na esperança de que este tipo de fóruns consiga transpor o fosso que separa as grandes apostas políticas das mais importantes necessidades dos povos do mundo. Não tentamos, de forma alguma, influenciar as políticas ou a tomada de decisões dos políticos.
-             Tretas!!! - retruquei. Sentia os músculos do meu pescoço a inchar e os meus dedos esticados ficarem tensos. O primeiro violino emitiu um leve grunhido. - Calculo que Kennedy tenha sido assassinado por extraterrestres, que Nixon tenha sido expulso do cargo pela sua avó e que a culpa da crise petrolífera de 1973 seja do Winnie-the-Pooh. Se não tivéssemos agido, o Canadá faria, neste momento, parte dos Grandes Estados Unidos. Porque é que vocês mataram Aldo Moro?
-             Sabe que não lhe podemos dizer nada, Sr. Estulin. Não vim aqui para discutir consigo.
Numa mesa redonda junto à janela, estava sentado um velho flácido, calvo e míope, com um fato cinzento demasiado grande e uns enormes óculos de massa, cujo rosto rosado ostentava a sombra permanente de um barba preta que fora deixada crescer durante muito tempo, e um bigode grisalho, mal aparado. Pediu um rum, encheu o cachimbo e ficou a olhar, absorto, para o jogo.
Às onze e quarenta e cinco em ponto, esvaziou o cachimbo, meteu-o no bolso das calças, pagou o rum e saiu, em silêncio.
-             Seria pedir demasiado que esta conversa ficasse entre nós? - Não costumo falar confidencialmente, sobretudo quando se trata de Bilderberg. - Dei comigo a divertir-me com a confrontação, esperando obrigar o primeiro violino a perder a calma.
O primeiro violino continuou a palrar, durante alguns minutos, sobre as virtudes das parcerias, da colaboração entre as nações, das crianças que morriam de fome em África e outros problemas bicudos.
Tentei concentrar-me no que dizia, mas em breve dei comigo a observar o rosto do segundo violino que, ou sorria, ou passava a língua pelo bigode.
Quando os sons do primeiro violino se tornaram uma toada insistente, voltei à realidade.
- Podemos fazer com que as coisas sejam compensadoras para si, Sr. Estulin. Quais as condições que pretende impor?
Por entre as árvores, via-se a lua cheia. Os candeeiros cintilavam. À distância, ouviam-se os sons abafados dos restaurantes apinhados e os latidos dos cães. Ficámos os três em silêncio durante vários minutos.
Apercebia-me de que o segundo violino se sentia pouco à vontade por permanecer em silêncio, sentado desconfortavelmente na beira de um banco de bar. Sem dúvida que estava a tentar inventar uma pergunta inteligente ou uma observação profunda.
O primeiro violino pegou num cigarro, acariciando-o, mordendo o lábio inferior e pensando em alguma coisa. Os seus olhos não estavam fixos no cigarro mas perdidos na distância.
-             Como condição para o meu silêncio, desejaria que todas as futuras reuniões de Bilderberg fossem anunciadas publicamente e que fosse garantido acesso livre e sem restrições a todos os jornalistas que nelas desejassem participar. Todas as conferências serão públicas e a lista dos participantes será comunicada antecipadamente. Nada de CIA, armas, cães, segurança privada e, acima de tudo, NADA DE SECRETISMO!
-Sabe que não podemos fazer isso, Sr. Estulin. Estão em jogo demasiadas coisas e o jogo já vai muito avançado.
-Nesse caso, meu caro senhor - respondi -, vão ter de me aturar até o árbitro apitar o [mal do jogo. Do salão, veio uma sucessão rápida de notas de piano, conversas em voz alta, risos e exclamações de crianças. (j reflexo do primeiro violino no espelho do salão mostrou-me os botões de veludo de um colete reflectido.
-             Boa noite, Sr. Estulin. - O primeiro violino não perdeu, nem por um momento, a sua cortesia. Na verdade, a sua delicadeza era notável.
Deve ter sido por isso que o enviaram, pensei. Talvez, em circunstâncias diferentes, pudéssemos até ter ficado amigos.
O segundo violino, na atitude cómica habitual de relaxar, inspirou e expirou rapidamente. Tirou o chapéu e, segurando-o com as duas mãos à frente do corpo, foi-se embora acertando o passo com o chefe.
As outras pessoas que se encontravam no átrio do hotel eram duas mulheres com rostos sonolentos e cansados e um caixeiro-viajante com uma barba tingida que envergava um colete de veludo preto sobre uma camisa branca, com monograma, já muito usada.
«Que estranho os joelhos dele estarem a tremer», pensei. Com efeito, fora uma experiência perturbante. Só então é que me apercebi de tudo o que estava em jogo. Que não se tratara de uma mera conversa entre o emissário deles e eu. Os dois homens atravessaram a praça e desapareceram na escuridão. Que sentimento terrível de ansiedade. Ficara tão determinado e invulnerável como antes. E, apesar de tudo, sabia que, a partir de então, a minha vida estaria permanentemente em perigo.

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